1. O QUE (QUASE) NINGUÉM FALA
1.1. - Há algo semelhante ao modo como explicam as desigualdades raciais: o foco da discussão é o negro e há um silêncio sobre o branco, pois só o negro é estudado, dissecado e problematizado.
1.2. - Os brancos reconhecem as desigualdades raciais, só que não associam essas desigualdades raciais à discriminação e isto é um dos primeiros sintomas da branquitude.
1.3. - Evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio.
1.4. - Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura.
2. PROJETAR E ASSIMILAR
2.1. A ideia de assimilação, planejada e levada a efeito pela nossa elite branca do final do século XIX, parece associar-se à dimensão coletiva daquilo que Freud chamou de o amor canibal, que pressupõe incorporar ou devorar o outro. . Pode-se pensar também no ódio narcísico. O ódio narcísico, em relação as minorias, é explicado por Adorno e Horkheimer (1985) pela paranóia, também pautada nas defesas primitivas em que se expulsa tudo o que possa representar uma ameaça à autopreservação egóica.
2.1.1. Chamam de "falsa projeção" o mecanismo por meio do qual o sujeito procura livrar-se dos impulsos que ele não admite como seus, depositando-os no outro. Aquilo, portanto, que lhe é familiar passa a ser visto como algo hostil e é projetado para fora de si, ou seja, na "vítima em potencial".
2.2. Frequentemente quem está no poder e tem medo de perder seus privilégios projeta seu medo e se transforma em caçador de cabeças. No Brasil há estudos que revelam que, na comunicação visual, o negro aparece estigmatizado, depreciado, desumanizado, adjetivado pejorativamente, ligado a figuras demoníacas.
2.3. Para Fanon, o negro representa o perigo biológico. O judeu, o perigo intelectual. Ele afirma que nas representações ligadas à sexualidade, o negro é senhor. É o especialista da questão: quem diz estupro diz negro.
3. NARCISMO E BRANCURA
3.1. O objeto do nosso amor narcísico é "nosso semelhante", depositário do nosso lado bom. A escolha de objeto narcísica se faz a partir do modelo de si mesmo, ou melhor, de seu ego: ama-se o que se é, ou o que se foi, ou o que se gostaria de ser, ou mesmo a pessoa que foi parte de si. Por outro lado, o alvo de nosso ódio narcísico é o outro, o "diferente", depositário do que consideramos nosso lado ruim.
3.2. Edith Piza (1998) é uma das raras estudiosas brancas brasileiras que se dedicou ao estudo dos brancos, ela destaca alguns pontos sobre a branquitude: - Algo consciente apenas para as pessoas negras; - Há um silêncio em torno da raça, não é um assunto a ser tratado; - A raça é vista não apenas como diferença, mas como hierarquia; - As fronteiras entre negros e brancos são sempre elaboradas e contraditórias;- Há, em qualquer classe, um contexto de ideologia e de prática da supremacia branca; - A integração entre negros e brancos é narrada sempre como parcial, apesar da experiência de convívio; - A discriminação não é notada e os brancos se sentem desconfortáveis quando têm de abordar assuntos raciais; - A capacidade de apreender e aprender com o outro, como um igual/diferente, fica embotada; - Se o negro, nas relações cotidianas, aparece como igual, a interpretação é de exibicionismo, de querer se mostrar.
3.3. Tatum (1992), psicóloga norte-americana, afirma que os brancos negam inicialmente qualquer preconceito pessoal, tendendo a posteriormente reconhecer o impacto do racismo sobre a vida dos negros, mas evitando reconhecer o impacto sobre as suas próprias vidas.
4. BRANQUEAMENTO E IDENTIDADE NACIONAL
4.1. O problema do branqueamento, abordado nas últimas quatro ou cinco décadas como um problema exclusivo do negro, nasce do medo da elite branca do final do século XIX e inicio do século XX, cujo objetivo é extinguir progressivamente o segmento negro brasileiro.
4.2. De certa maneira, desde o início do período colonial, o cruzamento racial foi a saída encontrada pela elite branca para resolver os diferentes problemas que a afligiam.
4.3. Branqueamento e ascensão social aparecem como sinônimos quando relacionados ao negro. Parece-nos que isso decorre do fato de que essa sociedade de classes se considera, de fato, como um "mundo dos brancos" no qual o negro não deve penetrar.
5. DISCRIMINAÇÃO RACIAL E DEFESA DE INTERESSES
5.1. - A noção de privilégio é essencial. A discriminação racial tem como motor a manutenção e a conquista de privilégios de um grupo sobre outro, independentemente do fato de ser intencional ou apoiada em preconceito.
5.2. - Há distinção entre discriminação provocada por preconceito e discriminação provocada por interesse.
5.3. Denise Jodelet (1989) destaca: O que é que faz com que pessoas que cultuam valores democráticos e igualitários aceitem a injustiça que incide sobre aqueles que não são seus pares ou não são como eles? A resposta que se chega é: Pertencimento social, haja vista que assim protegemos o "nosso grupo" e excluímos aqueles que não pertencem a ele.
5.3.1. Dessa forma, exclusão passa a ser entendida como descompromisso político com o sofrimento de outro. a ausência de compromisso moral e o distanciamento psicológico em relação aos excluídos.
5.3.1.1. A exclusão moral pode assumir formas severas, como o genocídio; ou mais brandas, como a discriminação.
5.4. Em geral, expressamos sentimentos de obrigações morais na família, com amigos, mas nem sempre com estranhos e, menos ainda, com inimigos e membros de grupos negativamente estereotipados. Pelos processos psicossociais de exclusão moral, os que estão fora do nosso universo moral são julgados com mais dureza e suas falhas justificam o utilitarismo, a exploração, o descaso, a desumanidade com que são tratados.
5.4.1. Quando precisam mostrar uma família, um jovem ou uma criança, todos os meios de comunicação social brasileiros usam quase que exclusivamente o modelo branco.
5.4.2. Assim, a aversão e a antipatia surgem.
6. DO MEDO DO OUTRO
6.1. Célia Marinho de Azevedo em sua obra Onda negra, medo branco (1987), evidencia como o ideal do branqueamento nasce do medo, constituindo-se na forma encontrada pela elite branca brasileira do final do século passado para resolver o problema de um país ameaçador, majoritariamente não-branco.
6.2. As explosões periódicas de medo acompanham a história europeia do final do século XIII ao começo da era industrial. Uma coletividade, em geral incitada pela sua elite, posiciona-se como vítima e justifica antecipadamente os atos de injustiça que não deixará de executar.
6.2.1. Imputando aos acusados toda espécie de crimes e de vícios, ela se purifica de suas próprias intenções turvas e transfere para outrem o que não quer reconhecer em si própria.
6.3. O medo e a projeção podem estar na gênese de processos de estigmatização de grupos que visam legitimar a perpetuação das desigualdades, a elaboração de políticas institucionais de exclusão e até de genocídio.
6.3.1. Adorno e Horkheimer (1985) destacam que os mais poderosos impérios sempre consideraram o vizinho mais fraco como uma ameaça insuportável, antes de cair sobre eles. Afirmam que o desejo obstinado de matar engendra a vítima; dessa forma ela se torna o perseguidor que força a legítima defesa.
6.4. Lilia Moritz Schwarcz (1993) afirma que nossos cientistas sociais históricos tinham um problema: como contar a história de um país majoritariamente negro e mestiço, nascido e prosperado sob a égide da escravidão negra já que não se mantinha próximo aos moldes europeus de civilização?
6.4.1. Schwarcz evidencia que, por meio de diferentes maneiras, o país era descrito como uma nação composta por raças miscigenadas, porém em transição. Essas raças passariam por um processo acelerado de cruzamento e seriam depuradas mediante uma seleção natural (ou talvez milagrosa), levando a supor que o Brasil seria algum dia branco. Ou seja, os negros seriam assimilados pelos brancos.
7. PACTOS NARCÍSICOS
7.1. A psicanálise revela-nos que todo ser humano tem, na atividade inconsciente de sua mente, um aparelho que permite interpretar as reações dos outros seres humanos, corrigindo as deformações que o outro submeteu, e compreendendo os costumes, as cerimônias e os preceitos, enfim, a herança de sentimentos das gerações anteriores, que no caso em tela, são altamente preconceituosas, ainda que inconscientes.
7.2. Podemos ainda problematizar a noção de privilégio com a qual as pessoas raramente querem se defrontar, transformando-a rapidamente num discurso de mérito e competência que justifica uma situação privilegiada, concreta ou simbólica. Quando se deparam com informações sobre desigualdades raciais tendem a culpar o negro e, ato contínuo, revelar como merecem o lugar social que ocupam.
8. CONCLUSÕES
8.1. Qualquer grupo precisa de referenciais positivos sobre si próprio para manter a sua autoestima, o seu autoconceito, valorizando suas características e, dessa forma, fortalecendo o grupo. Então, os brancos silenciam-se em torno do papel que ocuparam e ocupam na situação de desigualdades raciais no Brasil a fim de proteger seus interesses.
8.2. O legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva. Este silêncio e cegueira permitem não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses econômicos em jogo.
8.3. Ter a si próprio como modelo e projetar sobre o outro as mazelas que não se é capaz de assumir, são processos que podem ser tidos como absolutamente normais no desenvolvimento das pessoas.
8.3.1. O primeiro está associado ao narcisismo e, o segundo, à projeção.
8.3.2. No contexto das relações raciais eles visam justificar, legitimar a idéia de superioridade de um grupo sobre o outro e, conseqüentemente, as desigualdades, a apropriação indébita de bens concretos e simbólicos, e a manutenção de privilégios.